sexta-feira, novembro 02, 2007

Ensaio: O inevitável

Marcámos para as 13h, como sempre ela pediu-me para ser pontual e eu na minha eterna ingenuidade continuo a sair de casa apenas 30 min antes da hora marcada. Já estou atrasado, atensão arterial aumenta um pouco, os suores frios preenchem-me a testa, os outros condutores parecem congeminar um plano cuidadosamente, quase a uma escala universal, para que eu não consiga amenizar o atraso. Como se isso fosse possível... se já estou atrasado, não há volta a dar!
Finalmente chego a casa dela, corro para a cumprimentar. O seu olhar revela um misto de indiferença e lamento. Não era bem este tipo de olhar que esperava encontrar, mas dentro do que era espectável, também não é bom sinal. Beijamo-nos, sinto um arrepio gélido como se tivesse acabado de trincar um gelado de água, isto é deveras estranho.
Já fazia alguns dias que não nos víamos, eu estava com alguma ansiedade por sentir novamente o calor dos seus lábios, o aperto forte com que costumava presentear-me e as promessas segredadas ao ouvido. Mas algo nela estava diferente. O olhar. O beijo. A sua mão suada e pouco à vontade ao sentir o toque da minha, parecia que se estranhavam, como se a sua pele rejeita-se esse enxerto que eu teimava em lhe colocar por entre os dedos.
Fomos almoçar a um dos seus locais de eleição, eu também gostava, mas não com o mesmo grau de entusiasmo. Começámos a conversar, temas banais de um casal que já se conhece há algum tempo e relata ao seu par as novidades que lhe possam interessar. Foi então que surgiu o "precisava mesmo de falar contigo", num dia normal seria mais uma coisa banal, um problema que necessita-se da atenção mais cuidada do "namorado", mas nada de especial, no entanto hoje o dia não me parecia nada normal.
Sentia-me como que no fundo de um poço, com os ouvidos meio submersos, o som que ela emitia chegava-me abafado, quase ináudivel, não conseguia discernir com exactidão toda a informação que ela me queria passar. Não conseguia... ou não queria. As minhas mão já tinham largado as suas. Porquê?!
O meu olhar deambulava pela sala, observava o prato de um casal à direita, observava um jovem executivo a atravessar a rua ainda com o semáforo vermelho e olhava novamente para as minhas mãos, inquietas, a mexer nos talheres sem qualquer objectivo. Não conseguia suster a perna esquerda, constantemente a subir e descer apoiada apenas nos dedos e na parte dianteira do peito do pé. Porquê?!
Ela esforçava-se por segurar as minhas mãos, por me fazer olhar para ela, para que dissesse alguma coisa. Porquê?!
O nosso pedido chegou, os talheres quebraram o silêncio que subitamente se havia instalado, no entanto o som parecia algo amorfo, como se estivesse enclausurado num frasco fechado sobre o efeito de vácuo. O meu olhar, vidrado, contemplava o prato. Cada pedaço do bife, com o meu molhe preferido, parecia um bocado de serradura seca, sem sabor, ou de sabor desagradável. Porquê?!
Quando acabámos, os nossos olhares voltaram a reencontrar-se, o seu parecia agora um misto de lamento e de suplica, como que a pedir-me "fala! diz qualquer coisa!". Não falei. não sabia o que... Porquê?!
Despedimo-nos como dois conhecidos que haviam esgotado o parco tema de conversa. A viagem de volta a casa pareceu-me nem ter ocorrido, totalmente absorto em pensamentos dou por mim a ver-me ao espelho. Pareço mais velho, stressado e perdido. O meu olhar apenas deixa transparecer uma sensação de vazio. Porquê?!
Porque gosto eu tanto desse teu travo... amargo... a tudo o que me é mortal?!

9 comentários:

Roxanne W. disse...

Um sabor amargo e acre que se instala na boca tipo o vómito depois de uma noite de shots de aguardente de 0,15l... aquele sabor acre da verdade que já rebentou nas nossas mãos há tanto tempo e que mesmo com o corpo putrefacto nos deixamos arrastar... tal como o sabor acre da mortalidade que me escorria pela garganta quando me afogava nas palavras que teria que te dizer e já não conseguia mais guardar...
os beijos e o toque são sempre o primeiro sinal, o sinal que o tempo, nós mesmos, os outros, ou Tudo mudou...

Anónimo disse...

Porque somos humanos e custa-nos habituar à mudança. Acordamos simplesmente um dia e a vida que era nossa deixa de o ser... o porquê nunca mais chega mas sabemos de antemão que nada será igual,como ontem, como um mês,um ano atrás... e essa mudança repentina que não desejamos é o que mais custa.O porquê mesmo que chegue nunca vai aliviar esse vazio.

=^..^=

Soler Spot disse...

Bem, temos aqui um autêntico poeta, um homem q sabe o que diz e como diz.

Não é q isto seja um grande elogio principalmente vindo da pessoa q vem.

Um escrita ponderada, bem construída e acima de tudo cheia de detalhes que nos leva onde gostávamos de ter estado.

Tão ao contrário da minha pessoa, como tu tão bem sabes, q simplesmente desliga o cérebro e deixa os dedos escrever, tão simples, tão modesto, tão difícil.

Parrachanderson disse...

Concordo contigo kitty, o "porquê" mesmo que o desscubro não preencherá a sensação de vazio. Só o tempo e a experiência/maturidade permitem reagir melhor a estes momentos, ainda que a sensação de desnorte nunca seja possível de evitar.

Obgd soler, o elogio importa principalmente por ser dum gnd amigo ;)

Quanto à escrita, ultimamente apetece-me relatar momentos que me marcam e tentar dar a perceber como eles me marcam. Não sei se o tenho conseguido, mas a intenção é essa.

Anónimo disse...

eheheh ganda porca...ainda te fez pagar o almoço...mais valia ter dito logo... eu n lhe perdoava...fogo, pagar um almoço pa ouvir:"olha gostei mto, mas adeus camarada"... ;P

e sim, acho q consegues passar bem a mensagem q queres transmitir...tas lá, parrachito, tás lá!!!

Madeiras disse...

"A cidade está deserta,
E alguém escreveu o teu nome em toda a parte:
Nas casas, nos carros, nas pontes, nas ruas.
Em todo o lado essa palavra
Repetida ao expoente da loucura!
Ora amarga! ora doce!
Pra nos lembrar que o amor é uma doença,
Quando nele julgamos ver a nossa cura!"

A verdade é que temos sempre uma estranha tendência para a loucura, para aquela inebriante sensação que nos faz sorrir por dentro e extravazar a alegria sentida, para aquela forma diferente de olhar para as coisas mais simples que nos rodeiam, para nos transcendermos e transpormos para o papel o que nos vai na alma...E depois, depois há sempre um reverso, um lado mais obscuro que nos afunda num interminável turbilhão de dúvidas, de receios, de marasmo verbal, de indiferença, de desilusão, de desespero...

O porquê? Não sei...nem acredito que alguém possa explicar racionalmente esses fenómenos! Simplesmente nos limitamos a agir e a reagir perante estes altos e baixos que a nossa convivência nos proporciona.

Reage!! Acorda!!! VIVE! (mas não te arrependas de nada, excepto daquilo que não fizeste! E se não o fizeste, é porque existiu uma razão mais pura e mais forte)

Soler Spot disse...

Penso que não é a primeira vez q te oiço a "recitar" uma canção dos Ornatos Violeta / Poema Vitor Espadinha.

Essa sempre foi e será uma frase forte q nos abre os olhos e as feridas.

Vivemos num incógnito surreal, mas arriscamos na escuridão, simplesmente à espera de ver a luz ao fundo do túnel. Um túnel q nós mesmos criamos.

E mais uma vez concordo ctg Madeiras, ninguém deve arrepender-se de nada, excepto daquilo que não fez.

Quero acabar a congratular quem o faz, quem vai à procura do risco sabendo que vai sair magoado, sabendo isso tudo, avança. Sem medos, apenas com esperança de ser desta, ser desta vez q chega ao fim do túnel antes dele desabar.

São estes q conseguem, mais tarde ou mais cedo, são estes q dão o exemplo que o resto da "escumalha" precisa para abrir os olhos, para tentar algo q até à altura estava fechado, invisivel, impossível de alcançar.

Bem sei, bem sei, mais uma vez confuso, mas axo q quem eu queria acabou por perceber a mensagem.

Abraço

Joparracho disse...

Deep! estás lá primo... ;)

É mesmo isso, mas por vezes, quanto mais procuras uma resposta mais fundo te "enterras"... há casos em que mais vale deixar a vida correr sem algumas respostas!

Ritinha disse...

Hakuna Matata
Acho que é essa a melhor atitude!
Beijinhos